segunda-feira, 17 de junho de 2013

Voo-artigo de Gonçalo Moleiro



GONÇALO MOLEIRO 
Imaginar a cidade vista de cima é voar. Desenhá-la é materializar o imaginário, desvendando os segredos de cada espaço que, simultaneamente, sobrevoo e construo no íntimo. Sobrevoar a cidade e desenhá-la é afastar-me do que me é familiar, fazendo desaparecer paredes, portas e janelas e trabalhando apenas com texturas que mancham telhados e pavimentos. A aproximação ao abstracto é evidente. As vias são artérias fortemente hierarquizadas que, bombeando veículos e pessoas, assumem um carácter vital no funcionamento da cidade e na composição criada. São elas os elementos transversais às diversas partes do desenho, estabelecendo ligações entre os inúmeros edifícios que nascem de um solo demasiado fértil. Há pouco espaço vazio. O betão sobrepõe-se à natureza nesta cidade imaginária e na folha em que a construo. O protagonismo de construções antigas é apagado por novas, autistas e cegas em relação ao que as envolve. O espaço público desaparece para que se levantem mais edifícios. Imagino, sem as desenhar, as pessoas encerradas em caixas a que, revelando simpatia, damos o nome de casas. A rua, estreita, não mais lhes pertence. Vista de cima é, aliás, praticamente inexistente.
Sintra está presente nesta composição. Não só a Vila mas toda a linha que, ao longo de uma enorme artéria, nos liga à capital. Tal como se verificou neste e em tantos outros territórios, a cor branca da folha deixou de existir aos poucos. O desenho reúne várias cidades numa só. O caos materializa-se em linhas e manchas que, uma vez mais, reflectem sentimentos e acontecimentos relativos à cidade e traduzem, caricaturando, o que nela existe de bom e de mau, num exercício simultâneo de elogio e crítica aos nossos tempos.




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