GONÇALO MOLEIRO
Imaginar a
cidade vista de cima é voar. Desenhá-la é materializar o imaginário,
desvendando os segredos de cada espaço que, simultaneamente, sobrevoo e
construo no íntimo. Sobrevoar a cidade e desenhá-la é afastar-me do que me
é familiar, fazendo desaparecer paredes, portas e janelas e trabalhando apenas
com texturas que mancham telhados e pavimentos. A aproximação ao abstracto é
evidente. As vias são artérias fortemente hierarquizadas que, bombeando
veículos e pessoas, assumem um carácter vital no funcionamento da cidade e na
composição criada. São elas os elementos transversais às diversas partes do
desenho, estabelecendo ligações entre os inúmeros edifícios que nascem de um
solo demasiado fértil. Há pouco espaço vazio. O betão sobrepõe-se à
natureza nesta cidade imaginária e na folha em que a construo. O
protagonismo de construções antigas é apagado por novas, autistas e cegas em
relação ao que as envolve. O espaço público desaparece para
que se levantem mais edifícios. Imagino, sem as
desenhar, as pessoas encerradas em caixas a que, revelando
simpatia, damos o nome de casas. A rua, estreita, não mais lhes
pertence. Vista de cima é, aliás, praticamente inexistente.
Sintra está
presente nesta composição. Não só a Vila mas toda a linha que, ao longo de uma
enorme artéria, nos liga à capital. Tal como se verificou neste e em
tantos outros territórios, a cor branca da folha deixou de existir aos
poucos. O desenho reúne várias cidades numa só. O caos materializa-se em linhas
e manchas que, uma vez mais, reflectem sentimentos e
acontecimentos relativos à cidade e traduzem, caricaturando, o que nela
existe de bom e de mau, num exercício simultâneo de elogio e crítica aos nossos
tempos.
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