Julho de 1966.Mais um Verão na casa de Galamares, três horas
desde Lisboa com a mobília atrás, o carocha preto rolando pela estrada de
paralelepípedo rente aos pomares rasgados pelo eléctrico aberto, de onde furtivamente miúdos apanhavam nêsperas, pendurados no estribo. A escola
acabara, as férias prometiam novas aventuras, enguias no rio, teatros na
garagem, a velha Amália, a caseira da família, havia já aberto as janelas
para sair a humidade.
O Verão chegava previsível para as famílias da capital a
banhos e com toldo ao mês na praia. No café do Alcino, voltavam as
habituais tertúlias, enquanto os mais novos deambulavam entre os jogos de
matraquilhos ao “perde paga” e as músicas da moda, seleccionadas na jukebox que trazia a modernidade a Galamares para gáudio dos mais novos.
Ao Alcino, magro, óculos grossos, jeito para o negócio, nada escapava. Além da pensão à época, que explorava nas restantes divisões do
café, vendia bebidas no bar do cineteatro, em dia de cinema ambulante, e em
ano de Mundial de futebol apostara na compra duma televisão, das primeiras em
Galamares, onde a troco de módicos dez tostões se podia ver ao vivo a magia do Pantera Negra contra a Coreia, e a epopeia dos magriços que
assim infligiam novas Aljubarrotas, rematando, mágicos, com o pé que lhes vinha
mais à mão. A ligação à Eurovisão nem sempre era fácil, mas como milagre lá
surgia, ante palmas de alívio.
Galamares era um pequeno mundo. O salão, cinema ambulante de
fim de semana, a cinco escudos por dois filmes, Cinema Paraíso ritualizado na sala
escura com a épica abertura dos filmes Castello Lopes, convidando ao silêncio
sepulcral que antecedia a magia do Technicolor.
Lá se viu o Spartacus, o Ben-Hur, os 12 Indomáveis Patifes, o Cantinflas
ou o Fernandel; As nozes douradas da Leopoldina, triunfo do açúcar e receita
secreta, as bolachas de manteiga com buraco ao meio, finas e únicas. Tudo corria
sem pressas, apanhando pirilampos à noite, emboscando pequenos pássaros, sazonais
vítimas de predadores de calções, alternando entre a fisga ou o visco
traiçoeiro. E eram os rajás de pau, os palinos, a colecção de cromos. Um
microcosmos pululante, de senhores doutores e seus meninos, homens do campo,
veraneantes, transformando um lugarejo à beira da estrada numa miríade de
pensões e quartos alugados, a apanhar ares de Galamares, os médicos
aconselhavam, uma fauna de artistas e escritores invadindo a mansidão do local.
José Gomes Ferreira escrevinhando no Alcino, Rui Grácio, Mário Dionísio e
Barahona Fernandes, em casas próprias ou nas seis pensões improvisadas, águas
quentes e frias a desfrutar dos “ares” de repente transformados em receita médica.
Porém, não havia Verão sem o Xaimix. Xaimix,o Homem Cérebro
Electrónico, ilusionista, trapezista, artista andarilho, com os seus truques
com cartas e moedas, que brotavam das orelhas perante o espanto de miúdos num
tempo de tv a preto e branco e de um canal só.
Todos os anos, a esplanada do Alcino se animava de avós e
netos, doutores e caseiros, para ver o grande Xaimix, Houdini daquele pequeno
mundo de sonhos e ilusões, boquiabertos perante o desfiar dos truques,
acompanhados pela virtuosa harmónica bocal do homem dos sete instrumentos,
todos tentando adivinhar onde estava a marosca, e pedindo sempre novo número.
Várias luas e sóis passaram, a sépia virou cor, as televisões
rectangulares, e os toldos ao mês mudaram para Sul. Um dia chegou um tempo novo,
madrugada dita redentora, as árvores viram novos personagens, novos sons,
cartazes nas paredes, caseiros que agora se sentavam à mesa com os senhores
de Lisboa, renovando a magia todos os anos. De novo a brisa leve vinda do mar
oceano sopra sobre a velha casa cheia de mundos idos e outros ainda por vir, a
esplanada do Alcino resistindo holográfica, velha senhora de muitos mortos e muitos vivos.
O Xaimix envelheceu, sem abandonar a ribalta, e continuou,
agora com os filhos dos miúdos de outrora, os pais ainda intrigados com os
truques, se a carta estava marcada ou a partenaire comprada. Era um personagem
de Fellini, Merlin daquele pequeno mundo, fugindo da cor cinza no vasto palco
que para ele a vida foi.
Morreu há poucos anos. Não mais houve telepatia, lenços
atados ou harmónica de boca. Não mais o laço preto e o casaco branco. Na
sua vida artística, e até aos nossos dias, andou sempre com as malas às costas, percorrendo em mais de 50 anos,
as aldeias e vilas de norte a sul de Portugal.
As
palavras mágicas “Zás – Katrapás e Zás”, usadas nos momentos cruciais
dos truques, ficaram na memória de todos aqueles que
assistiram aos seus espectáculos.
Deixou como desejo ser enterrado com o seu fato de
mágico, artista na vida como na morte, preparando o espectáculo para os
serafins na nuvem alta onde a harmónica continua a soar. E o mundo continuou, a
serra sentinela, o eléctrico dolente estrada abaixo, o som da harmónica de boca
sumindo ao longe.Não esquecemos.
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