Chovia, de facto, mas não era
água. Não era água nem nenhum outro líquido. Chovia ar e, com ele, um vento
húmido carregado de respostas para a montanha que reclamava impaciência pela
seca.
No
cume, um trémulo palácio cinzento esboçava-se belo ao adquirir uma
invisibilidade efémera proporcionada pelas nuvens que rondavam literalmente o
empreendimento de ordem invulgar que se fez construir justamente naquela
montanha.
Todas
as luas novas verificavam esse facto. Nas noites mais escuras de toda uma vida
haveria de ser assim: invisível pela obscuridade unicolor. O palácio... esse,
nessas noites em particular, elevava-se então por entre os aglomerados de
gases, de águas que não caíam logo de uma vez e acabavam com o sofrimento.
Afogar-se-ia tudo! Mas, no entanto, morrer-se-ia pela falta de ar. Morre-se
pela falta de um dos elementos primordiais de tudo o que se julga existir.
Não era
pela falta de água que tanto necessitava a montanha! Dela precisava para
decrescer ou crescer. Em demasia, derrocar-se-ia, distribuindo a sua massa; em
quantidades racionadas, sobrepôr-se-ia a tudo, demonstrando uma total
imponência de superioridade e, ao mesmo tempo, de grandiosidade.
Mas
não! Continuava a ser pela ausência do real elíxir da vida terrestre: o ar.
E a
água não vinha. Ameaças constantes construiam esperanças marcadas pela angústia
de querer respirar, mas o obstáculo gasoso sufocava-nos a todos: à montanha, ao
palácio, a mim e à minha única linguagem de expressão, baseada no som e na
junção das suas partes.
Pelo
fogo não era, porque não havia nada que se queimasse.
O
cenário reduzia-se a uma montanha de terra com alguns blocos de pedra por ela
espalhados. No ponto alto edificava-se o dito palácio e, dentro dele, eu e o
meu instrumento que me fazia falar, porque não abria a boca. Recusara-me a
evocar sons oriundos da minha boca desde o momento em que me apercebi da sua
inutilidade nesta realidade do nada.
Portanto,
nada para queimar. Também não se podia ficar soterrado, porque era uma terra
compacta e seca, desejosa de líquidos para ruir.
Pela
falta de ar...
Disse
nas luas novas, mas porque era sempre Lua Nova todas as noites; e era sempre
noite todos os dias. Mas, ainda assim, nessas noites em particular, sentava-me
no único banco do palácio em frente ao Grande Orgão, com o qual tentava
exprimir todas as minhas emoções para o abstracto. Sim, disse bem, para o
abstracto, porque não conhecia mais nada para além das manchas cinzentas que me
rodeavam. O próprio palácio limitava a minha visão – que, só por si, já era
razoável.
Mas
tocava, falava, emocionava-me, quando fazia isso mesmo: tocar, falar e
emocionar-me. Tudo isto parecia em vão, mas, lá de vez em vez, concluia que era
para mim e por mim que o fazia. Mas não só... Eu queria mais alguém, porque,
pura e simplesmente, amava alguém. Esse alguém abandonou um mundo (o meu) que
nem chegou a contemplá-lo. Deixei de saber quem ou o que é que amava, porque
voltei a ficar só neste meu mundo.
O
Grande Orgão era praticamente todo o interior do palácio, dando-lhe, portanto,
a forma imponente e fantástica de um orgão gigante.
Cada
vez que me sentava naquele banco meticulosamente esculpido sob forma
inclorofilada, fazendo-se passar por aquilo a que chamam cogumelo, que não é
mais do que o aparelho reprodutor dos fungos, o carpóforo, com o propósito de
tocar meditativamente com base na improvisação, sentia em mim um instante de
liberdade. Tinha em minha posse um instante infinito de uma plenitude
extremamente bela, mas, uma vez mais, efémera. Um instante infinito num intervalo
de tempo sem noção: nem de tempo nem de intervalo, quanto mais de instante!
Muitas
vezes tocava até deixar de sentir as mãos, o corpo, a mente ou o conjunto deles
todos ao mesmo tempo. Só nunca tinha conseguido tocar o Grande Orgão até deixar
de ouvir as minhas notas lançadas ao eterno abstracto. Nunca tinha conseguido
até que numa dessas noites isso aconteceu. E, ao deixar de ter percepção das
minhas, passei a escutar outras praticamente semelhantes, como que sombras do
som. Seria o eco?! Não acreditei que fosse. Não naquela altura, porque era tudo
tão abafado que o próprio som se sentia embaciado. Além de que as notas que
passava a escutar, enquanto tocava sem ouvir as minhas, eram mais redondas e
prolongadas, e num intervalo musical inferior em pelo menos três tons em
relação às que do Grande Orgão se libertavam através dos cilíndros depois de
ter pressionado as teclas da razão emotiva que me propunha a realizar cada vez
com mais força. Queria levar ao exagero o meu virtuosismo esporádico de sentimentos.
Depois de ter ouvido algo tão idêntico ao que não ouvia enquanto tocava, ou
melhor, não ouvia o que tocava, principalmente numa trajectória invulgar, visto
que o som não trespassava a barreira que as nuvens proporcionavam – não sei
porquê, mas era assim -, decidi nunca mais parar e extremizar a emoção que em
mim se alojava. E foi a minha personalidade que, temperada pelo meu carácter
obscuro, caracterizada por temperamento racional, exaltou o maior dos
deslumbramentos: o desmoronamento dos gases que se afirmavam superiores ao
firmamento, tendo em vista que esse era o meu horizonte: nuvens carregadas de
ar húmido que ameaçavam esperanças.
Cheguei
a direccionar os dedos às teclas da extremidade do bendito instrumento; tanto
da direita como da esquerda: ambas eram imperceptíveis do ponto de vista lógico
da realidade humana.
Desesperadamente
tocava de coração apertado. Concentrava todas as forças num acto majestoso.
“Uno” seria o termo correcto para reduzir numa premissa a intenção sublime da
minha individualidade com o Todo.
Apercebia-me
de que o som que me era exterior penetrava por algumas brechas que as nuvens
haviam começado por abrir ao meu som. Isso implicou que chovesse. E as nuvens
malditas foram-se evaporando, deixando fecundar a terra da montanha pelo H2O
dos homens.
Imediatamente
depois da primeira gota, à qual uma quantidade inumerável doutras se seguiram,
do solo diagonal de 45º germinavam ervas, arbustos, árvores e, colados nas
rochas, musgo. De volta das árvores, pequenos poros de fungos que se iriam
formar logo de seguida em flores da obscuridade. Realmente parecia incrível
existirem tortulhos sem luz! Mas, entretanto, ao mesmo tempo que da terra da
montanha brotava o Ser Vegetal em série e em massa, do céu que finalmente se
começava a ver reluziam luzes cada vez mais fortes. Mas isso o problema era
meu, porque essas luzes eram estrelas e uma delas iniciava o seu devir num cone
de terra lamacento, enquanto os meus olhos tardavam a abrir. O esforço era
doloroso e era a primeira vez que tinha claridade desde a minha existência. Não
era cego... eu via no escuro, e neste escuro... aliás, naquele escuro nada se
via; um escuro cinzento que conjugava toda a matéria numa mistura invisível de
preto e branco.
Mesmo
assim tocava, e chorava por duas razões: pela luz ofuscante de uma esfera
luminosa e pela emoção intrépida do que se passava.
Mais
tarde, quando tudo parecia já uma selva, lembrei-me de parar com a minha súbita
explosão frenética de sons e subir ao ponto mais alto do palácio que evocava
notas.
Assim
que retirei as mãos das teclas ouvi uma última pronúncia de notas semelhantes
ao que eu tocara.
Detive-me
alguns instantes no cimo e ganhei uma nova substância que se libertava do meu
corpo: suor. Dei meia volta e vi exactamente a mesma montanha com um palácio da
mesma forma. Estava mais longe do que se possa imaginar, mas para mim
aconchegava-se cada vez mais, por me parecer, talvez, familiar.
Mas não
via ninguém, só certas notas musicais mais prolongadas que os meus ouvidos iam
captando. E com isto, os meus pés queixavam-se, porque a terra escaldava, o
calor intensificava-se.
Inalava
e cheirava-me a queimado. Olhava à volta e reparava em sinais de fumo. Seriam
novamente os gases abafados e cinzentos alterados apenas por temperatura?
Libertei-os para me eliminarem?!
Olhei
uma vez mais a outra montanha com o seu palácio e vi sair de dentro, no ponto
alto, um indivíduo igual a mim, tal como eu tinha feito, tendo os mesmos gestos
e olhando o que eu olhei até que deu meia volta e viu-me a começar quase a arder.
Pobre
infeliz que observava o seu futuro.
Tinha
descoberto quem amava e não cheguei a morrer queimado, porque derreti.
Gonçalo Nuno Saraiva Alves das
Neves, natural da Área Protegida Sintra-Cascais, conta já 36 voltas ao Sol na
viagem pelo tempo. Tem licença para Antropologia e especializações em
Informações e Segurança e em Estratégia. Ensina Geografia (Espaço), História (Tempo),
Filosofia (Causa) e Português. Tem várias paixões: amador e sempre estudante de
Xadrez, um observador do Reino dos Fungos, observador e fotógrafo, analista
fenomenológico e músico. Exterioriza emoções no virtuosismo da sua Flauta
Transversal e na racionalidade da sua Guitarra Clássica. Sem réguas, esquadros
ou compassos, desenha o que a mão lhe deixar. É escritor por inspiração e iniciou
a escrita no secundário e encontrou o amor pela escrita, dedicando-se ao
Surrealismo Épico. Tendo escrito três livros, dos quais um editado, intitulado
“A Aventura Simbólica, Vol. I”. Fora
isto e tudo o resto, gosta de explorar florestas e penedos e faz colecção de
botões.
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